Minha cunhada me deu um par de chinelos listados de azul marinho e branco. Eles são de tecido atoalhado e têm sola flexível. Podem ser lavados na máquina. Mas essa não é uma grande vantagem, pois não vou enfiá-los para lavar junto com lençóis, por exemplo, afinal, são uma coisa mais suja. Piso no chão com eles. Então só lavo em determinadas ocasiões, mais especificamente junto com o tapete fofinho do banheiro das visitas. E lavo esse tapetinho a cada duas ou três semanas. A última lavação da dupla tapete e chinelos listados (na verdade trata-se de um trio) foi na semana passada. O azul está bem marinho e o branco, branquíssimo.
Ontem exagerei um tanto no jantar e no vinho. Acordei no meio da noite morrendo de sede e parti para a cozinha, em busca de um generoso copo de água mineral geladinha. Com gás. Mas isso, o gás, não vem ao caso. Acendi a luz da cozinha e me deparei com uma imeeeensa barata. É notório e incontestável, todos sabemos, que historicamente homens tem horror a baratas. Não podemos concebê-las vivas e perambulando pela casa como fazemos com as também porquésimas formigas. Então a eliminação da intrusa da madrugada era essencial e urgente. Senti meu instinto assassino súbita e totalmente desperto. Então, numa atitude primitiva, olhei para meus pés e me senti impotente: Chinelo listadinho!! Impossível matar uma barata com um chinelo listadinho de azul marinho e branco com sola flexível!
Foi por isso, e só por isso, que saí correndo!!! Não me interpretem mal. Estava em busca da segunda arma mais eficaz que existe contra batatas: Mortein. Alguém dirá que eu deveria ter ido em busca de um chinelo mais adequado, Havaianas, por exemplo. Mas só pensaria em Havaianas quem não conhece o Mortein. Um tubo de inseticida pretão. Com a tampa, que também é o troço de apertar, vermelha. E na frente tem o desenho de um raio caindo em cima de uma barata com as perninhas para o ar e a frase: Mata em seis segundos. Só de olhar para o tubão a gente se sente seguro. Com ele nas mãos o sangue voltou a correr em minhas veias e me senti absolutamente confiante.
Voltei corajosamente para a cozinha empunhando a arma letal. Avistei o indivíduo e fui até ele. Primeiro jato: chhhhhhhhhhhhhhhhh. Errei. A criatura saiu correndo. Nova investida, chhhhhhhhhhhhh, e ela foi para outro canto. E eu atrás, chhhhhhhhhh, chhhhhhhhhhhhh, chhhhhhhhhhh. Obviamente os seis segundos só começam a contar quando a fabulosa arma química atinge o monstro. Chhhhhhhhhh, chhhhhhhhhh, xiiiiiiiiiiiiiiiiiii. A maldita foi para baixo da geladeira. Chhhhhhhhhh, chhhhhhhhh...
Cóf, cóf, cóf. Saí do aposento pressentindo uma grave intoxicação. Mal podendo respirar. Kafka, transformado em uma barata gigante, não ousaria por os pés na minha cozinha. Voltei cambaleante para o quarto. A sede agora era imensa. Bebi uns dois litros de água morna e sem gás, da torneira do meu banheiro, e voltei para a cama. Saco! Já que não tenho uma máscara anti gás lacrimogênio, melhor deixar que minha empregada remova o cadáver amanhã, quando ela afastar a geladeira para limpar embaixo. Até lá o efeito devastador do produto já deve ter passado. E, muito provavelmente, todas as baratas da redondeza estarão mortas.
Pensando melhor, vou rezar para que o unicórnio cor-de-rosa invisível desmaterialize a defunta, pois nem duendes acreditam em pessoas que a cada faxina limpam embaixo da geladeira!!!