domingo, 25 de julho de 2010

Preconceito Padrão

Estava, sexta-feira, em um mini-engarrafamento que sempre se forma diante do primeiro semáforo no caminho entre trabalho e casa, portanto com aquele ótimo humor de quem já iniciou o final de semana e escuto, muito claramente, pois a dupla estava a pouco mais de um metro de mim:
- E então, abandonou a chapinha?
- Sim, decidi assumir os cachos, como a Taís Araújo!
- Ficou ótimo!

Normalmente não seria o caso de eu dar atenção, mas como eram duas vozes masculinas... olhei. Sim, eram duas bibas. Uma ruivinha, branca que só, de cabelo bem curtinho, até me lembou o Elton John, e a outra, a Taís Araújo cover, um homem que, se eu fosse mulher, diria: - Que desperdício!!! Um mulato alto, elegante, com um sorriso de comercial de pasta de dente. Não de Even, aí seria exagero, mas um chocolate ao leite de respeito. Com uns cachos realmente lindos.

Foi quando eu pensei na cor dele, mulato claro, moreno escuro, sei lá, mais moreno que o Marcos Palmeira... ué, de onde eu tirei essa comparação? De minutos atrás, quando eu, assim como todos os meus milhares de colegas no Brasil inteiro, recebi a informação de que a nossa empresa vai fazer uma pesquisa para saber de que cor somos. Corrijo. De que cor nos auto-declaramos. Pode?

Não satisfeitos, os gênios que bolaram este maravilhoso questionário, ainda dão exemplos, para quem não é capaz de se encaixar sozinho no arco-íris, de personalidades que se enquadram em cada padrão: Airton Senna e Zilda Arns são considerados brancos. Pelé e Zezé Motta, adivinhem? Amarela, a Fernanda Takai. Aí vem os pardos. Ah, os pardos... Machado de Assis e Marcos Palmeira.

Marcos Palmeira é mulato? Particularmente nunca achei ele muito mais moreno que o Senna. Mais bem passadinho, mas nada assim, tão gritante. Como uma estagiária que outro dia, no arquivo, falava para outra que era negra. Quase caí da cadeira. Fulaninha, negra? Ela até tem o cabelo bem escuro, a pele mais bronzeada, mas é menos mulata que a Camila Pitanga. E aí? É filha de negros? Tá. Pode se dizer negro até quem não parece. Mas e daí? Que diferença faz se é ou não negro? Se é ou não amarelo? E para a empresa? Menos diferença ainda.

Costumo dizer que se eu fosse um cachorro, seria um daqueles bem guaipecas, que não tem como definir a raça, tamanha a mistura das minhas origens. O Brasil todo é assim, uma grande matilha de SRD (sem raça definida). Todo mundo é um pouco de tudo. E todos convivem sem estresse, tom sobre tom. Então porque criar preconceito onde ele não existe?

Talvez minha negritude não se manifeste na pele, mas na alma. Também quero liberar meus cachos, como a Taís Araújo! Mas isso, só em sonho! Como essa vida é injusta.

domingo, 18 de julho de 2010

Quem planta sacanagem colhe solidão

Meu vizinho tem um excelente equipamento de som.
Meu vizinho vai ser uma pessoa muito, muito solitária.

Passa da uma hora da manhã de domingo. Após enfrentar um sábado chuvoso e sem graça, decido ir para cama cedo, desfrutar da companhia do José - o Saramago - outro que também morreu e haverá o leitor de pensar que tenho alguma predileção por cadáveres, mas não, havia efetuado a compra deste livro antigo pela internet, antes que a morte, com suas intermitências, o resolvesse visitar - e eis que inicia uma sessão musical na casa de trás.

Por alguma confluência de engenharia, que traz o som dele diretamente para cá, ou porque o sujeito realmente ouve música muito alto, tudo o que ele toca lá escuta-se nitidamente no meu quarto. Sem distorção alguma, o que me leva a crer que ele fez um alto investimento em amplificadores, alto-falantes, caixas acústicas e coisa e tal.

Normalmente ele escuta sempre as mesmas músicas, alguns temas batidíssimos de filmes antigos, New York, New York, algumas coisas óbvias de Michael Jackson... e, por alguma razão que a própria razão deconhece, finaliza sua seleção escutando "eu sou Elimar, de todos os santos"... Bem, eu nunca disse que ele tinha bom gosto, mas nada que agredisse tanto. E quando estava começando a atingir aquele ponto de querer rogar alguma praga, vinha a musiquinha do Elimar, alertando para a inutilidade dessa tentativa e - viva! - para o final do momento musical.

Pois nunca antes eu quis tanto escutar Elimar Santos!

Obviamente esse senhor teve filhos e é a festinha de aniversário de um deles que está acontecendo. Eles escutaram todos os CDs do Aviões do Forró! Desde os mais idiotas até os mais ridículos. Dos repugnantes aos escrotos. E eu e o Zé aqui, praticando a serenidade. Pensando que, afinal, são jovens descerebrados de uma região onde o forró impera. E que, afinal, não há nestes tempos oferta de música de qualidade como havia nos anos 80... Mas, convenhamos, sempre tem alguma coisa. Particularmente não gosto de Pato Fu, mas estaria nas nuvens se fosse a Fernanda Takai assoprando nos meus ouvidos até agora. Mas Aviões do Forró, argh! E como eu sei que era Aviões do Forró? Porque os cantores gritam a cada cinco minutos o nome da banda!! Ainda mais isso!

Aí deu uma pausa, cantaram parabéns (provavelmente com as palmas das mãos desencontradas) e retomaram com uma música cuja letra magnífica é o título desta postagem: quem planta sacanagem colhe solidão. Não resisti, abandonei o Saramago e fui buscar o micro. Pesquisei e descobri que é do Latino. Latino!! Então escutaram muita coisa linda dele! Letras profundas e tocantes como "selinho na boca". O volume, nem preciso dizer.

Agora estão escutando alguma espécie de sei lá o quê, alguma música feita por presidiários. Só o que se consegue compreender é quando o cara fala "sai do chão, sai do chão", o que eu espero que não aconteça! Já pensou essa gurizada debilóide voando por aí! Elimar de Todos os Santos que não permita que isso aconteça!

Por aqui é comum que os filhos de famílias abastadas façam cursos de inglês fora do país, preferencialmente em lugares onde existem guetos de brasileiros, para facilitar as coisas. Rezo para que o filho do meu vizinho decida fazer o prezinho na Austrália. E leve consigo seus irmãos todos, para que festas embaladas por essas surpreendentes melodias sejam apenas uma lembrança distante, como aqueles sonhos ruins.

E a solidão do meu vizinho? Como diria um filósofo latino, plantou sacanagem...

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Não há mais tempo

Stall se foi. Não deu tempo de visitá-lo. E agora não há mais nada a fazer.

Recebo inúmeros e-mails falando que passado e futuro não existem, que só temos o presente. Que devemos viver intensamente este momento, que só o agora está ao nosso alcance... variações sobre o mesmo tema. Algumas mais chatas que outras. E então me deparo com a morte. Catapuf, morreu. E agora? Se foi o boi com a corda. No caso, o cavalo, e sem corda... explico com uma pequena historinha.

Era uma vez um cavalo tobiano, branco com manchas marrons. Era bonito, forte e altivo, a tal ponto que Denise, ao vê-lo pela primeira vez, ficou achando que destoava daquela carroça. Eventualmente ela o via, no caminho do trabalho. O tempo foi passando, ela viu o animal emagrecendo muito, sendo maltratado pelo dono e decidiu queixar-se às autoridades. Não obteve eco em nenhum lugar. Aparentemente não havia proteção legal para o bicho. Ela procurou a Associação de Proteção aos Animais que entrou em contato com o dono, um tal de Amendoim, homem bruto que fez ouvidos moucos aos acordos com a APA para que Denise medicasse Tornado - seu nome, na época. E seguiu com os maus tratos, a ponto de um dia colocar os arreios sobre aquele corpo que era só couro e osso com uma imensa ferida no lombo que sangrava e estava visivelmente infeccionada.

Mulherzinha que é, Denise chegou ao trabalho aos prantos, incapaz estava de resolver a situação, já que o tal brutamontes se recusava até mesmo a vender o cavalo agonizante. Nesse dia seu colega Rodrigo assumiu as rédeas da situação e conseguiu salvar o bicho, encontrando inclusive uma baia onde ele poderia ficar para receber cuidados veterinários, comida de qualidade, repouso e carinho.

Durante quatro meses ambos cuidaram de Stallone, que foi rebatizado por Helton, antes de saber que ele era castrado e que, portanto, não lhe cabia tão bem a menção a um garanhão italiano. Stall se recuperou da ferida, o risco de infecção generalizada foi afastado com muitos antibióticos, ele tomou soro, arrumou os cascos, foi depilado, todos os seus carrapatos foram removidos, sua crina foi cortada, fez tratamento dentário. Durante este período de recuperação tomava banhos diários, era escovado, tinha direito a cinco refeições por dia e água fresca.
Todos os sábados, e pelo menos um ou dois dias na semana, Denise e Rodrigo levavam cenouras e o faziam exercitar-se.

Stall ficou bom. Mas jamais poderia voltar a ser montado ou puxar carroça. Sua coluna estava condenada. Então era hora de encontrar um lugar onde ele pudesse passar o resto da vida descansando. A fazenda do sogro de Sânia, em Areia, foi um lugar mais do que ideal para ele. Muito pasto, um açude lindo, um clima maravilhoso e nada mais para fazer do que viver livre e solto.

Pois foi assim que ele terminou seus dias. Ontem não acordou. O vaqueiro do "Seu" Juraci encontrou Stallone deitado lá no seu lugar favorito. De onde não levantaria mais. Não se sabe bem, ainda, o que aconteceu. Mas acabou. Ele se foi. Antes que Denise e Rodrigo o tivessem visitado uma última vez, como estava planejado.

Nâo é a coisa mais triste do mundo. Morreu um cavalo velho. Denise chora não por ele, que enfim teve uma morte digna. Passou os últimos oito meses em liberdade, sem maus tratos, sem sofrimento. Chora por ela mesma. Pelo que não deu tempo de fazer. Chora porque não há mais tempo.

Acabou a historinha.

Estranhamente os e-mails chatos falando em não deixar nada para amanhã passam a fazer sentido. Nada é mais definitivo do que a morte. E também nada é tão claro quanto ela para demonstrar que muito pouco está sob nosso controle. Não se anda para trás. Lamentavalmente não dá para voltar o tempo.

Para Stall a vida acabou. Para nós todos, a cada dia, acaba um pouco o tempo de viver.