segunda-feira, 5 de julho de 2010

Não há mais tempo

Stall se foi. Não deu tempo de visitá-lo. E agora não há mais nada a fazer.

Recebo inúmeros e-mails falando que passado e futuro não existem, que só temos o presente. Que devemos viver intensamente este momento, que só o agora está ao nosso alcance... variações sobre o mesmo tema. Algumas mais chatas que outras. E então me deparo com a morte. Catapuf, morreu. E agora? Se foi o boi com a corda. No caso, o cavalo, e sem corda... explico com uma pequena historinha.

Era uma vez um cavalo tobiano, branco com manchas marrons. Era bonito, forte e altivo, a tal ponto que Denise, ao vê-lo pela primeira vez, ficou achando que destoava daquela carroça. Eventualmente ela o via, no caminho do trabalho. O tempo foi passando, ela viu o animal emagrecendo muito, sendo maltratado pelo dono e decidiu queixar-se às autoridades. Não obteve eco em nenhum lugar. Aparentemente não havia proteção legal para o bicho. Ela procurou a Associação de Proteção aos Animais que entrou em contato com o dono, um tal de Amendoim, homem bruto que fez ouvidos moucos aos acordos com a APA para que Denise medicasse Tornado - seu nome, na época. E seguiu com os maus tratos, a ponto de um dia colocar os arreios sobre aquele corpo que era só couro e osso com uma imensa ferida no lombo que sangrava e estava visivelmente infeccionada.

Mulherzinha que é, Denise chegou ao trabalho aos prantos, incapaz estava de resolver a situação, já que o tal brutamontes se recusava até mesmo a vender o cavalo agonizante. Nesse dia seu colega Rodrigo assumiu as rédeas da situação e conseguiu salvar o bicho, encontrando inclusive uma baia onde ele poderia ficar para receber cuidados veterinários, comida de qualidade, repouso e carinho.

Durante quatro meses ambos cuidaram de Stallone, que foi rebatizado por Helton, antes de saber que ele era castrado e que, portanto, não lhe cabia tão bem a menção a um garanhão italiano. Stall se recuperou da ferida, o risco de infecção generalizada foi afastado com muitos antibióticos, ele tomou soro, arrumou os cascos, foi depilado, todos os seus carrapatos foram removidos, sua crina foi cortada, fez tratamento dentário. Durante este período de recuperação tomava banhos diários, era escovado, tinha direito a cinco refeições por dia e água fresca.
Todos os sábados, e pelo menos um ou dois dias na semana, Denise e Rodrigo levavam cenouras e o faziam exercitar-se.

Stall ficou bom. Mas jamais poderia voltar a ser montado ou puxar carroça. Sua coluna estava condenada. Então era hora de encontrar um lugar onde ele pudesse passar o resto da vida descansando. A fazenda do sogro de Sânia, em Areia, foi um lugar mais do que ideal para ele. Muito pasto, um açude lindo, um clima maravilhoso e nada mais para fazer do que viver livre e solto.

Pois foi assim que ele terminou seus dias. Ontem não acordou. O vaqueiro do "Seu" Juraci encontrou Stallone deitado lá no seu lugar favorito. De onde não levantaria mais. Não se sabe bem, ainda, o que aconteceu. Mas acabou. Ele se foi. Antes que Denise e Rodrigo o tivessem visitado uma última vez, como estava planejado.

Nâo é a coisa mais triste do mundo. Morreu um cavalo velho. Denise chora não por ele, que enfim teve uma morte digna. Passou os últimos oito meses em liberdade, sem maus tratos, sem sofrimento. Chora por ela mesma. Pelo que não deu tempo de fazer. Chora porque não há mais tempo.

Acabou a historinha.

Estranhamente os e-mails chatos falando em não deixar nada para amanhã passam a fazer sentido. Nada é mais definitivo do que a morte. E também nada é tão claro quanto ela para demonstrar que muito pouco está sob nosso controle. Não se anda para trás. Lamentavalmente não dá para voltar o tempo.

Para Stall a vida acabou. Para nós todos, a cada dia, acaba um pouco o tempo de viver.

Um comentário:

Anônimo disse...

Me apego ao trecho que faz referência a “deitar e não mais acordar” ou “acordar em outro lugar”. Para ser este o resultado da morte. Sei lá! Apenas parece.

Não consigo compreender como certas coisas funcionam nas nossas vidas. Não sei se quero este tipo de conhecimento! É muito complicado compreender tudo à nossa volta. Parece que quanto mais se sabe menos domínio se tem das variáveis, nesse caso, a variável e insistente morte, pois nunca sabemos exatamente quando, e mesmo que se saiba ela é sempre surpreendente.

Percebo, nessa história real, que a distância neutraliza alguns sentimentos, adormece-os e ai, “catapuf” um dia acordam...

“Não há mais tempo”... “...a cada dia, acaba um pouco o tempo de viver.” É estranho isso! O tempo sempre acaba! Que chato!