segunda-feira, 10 de maio de 2010

Abandono?

Sem sono, com o pensamento saltitando de uma recordação antiga a outra recente, depois a um sonho mal sonhado, como sucede naqueles momentos em que tentamos não pensar em nada, estabeleço uma conexão entre dois relatos que, em tese, não tem qualquer ligação.

Uma amiga, em virtude de uma aula prática do curso de fisioterapia, ficou profundamente consternada com uma visita a uma instituição que trata de pessoas idosas com algum tipo de problema de locomoção. Viu por lá senhoras e vovôs necessitando de cuidados médicos mas, sobretudo, de atenção e carinho. Ficou particularmente emocionada com a declaração da sua paciente naquela tarde, que afirmou que ela (minha amiga) tinha sido a alegria do dia dela. Que sua mãe era uma pessoa abençoada por ter uma filha assim. Que ela (a senhora) tinha sido abandonada pelas filhos que até a casa dela tinham tomado e, heresia, a tinham deixado sem nenhum perfume. É de cortar o coração, não é? Uma vovozinha desprotegida e meiga, toda tortinha, abandonada pelos filhos desnaturados.

Conta-me um amigo, com lágrimas nos olhos que ele tenta disfarçar, das dificuldades que vem enfrentando com sua mãe, que lhe causa transtornos em função da sua dependência da bebida. Ele e os irmãos são constantemente surpreendido com alguma travessura da mãe que desaparece sem dizer onde foi e com quem está, que é encontrada embriagada na sala em meio a uma bagunça generalizada, que se comporta de forma inadequada, estando alcoolizada, nas situações mais diversas. Ele já tentou conversar, já brigou, já demonstrou tristeza extrema, já se mostrou compreensivo. Tudo inútil. Ela reincide no vício e isso já chegou a um ponto em que ele e os irmãos pensam em interná-la.

Não é difícil imaginar onde as duas histórias podem se cruzar. Não estou afirmando que a doce vovozinha que minha amiga tratou fosse uma pinguça inveterada que ninguém mais suportava, ou que ela fosse uma megera que perseguia os netinhos dando bengaladas, ou que... sei lá o que mais. O fato é que para pelo menos uns 85% da população mãe é mãe. E, ainda que não se pretenda passar o resto da vida grudado na barra da sua saia, tampouco se tem a intenção de dar fim a ela ou trancafiá-la em uma instituição do tipo depósito de idosos. Meu amigo começa a imaginar uma alternativa para a situação que está chegando ao limite. Insustentável é uma palavra difícil, mas tem sido a cada dia mais pronunciada por ele.

Por trás de todas as histórias de abandono, de alguém que desistiu de algo ou de alguém, sempre há uma forte razão que justifica esta decisão extrema. Sinto pena da velhinha da instituição, sinto pena do meu amigo e sinto pena da sua mãe. E também lamento pelos filhos da velhinha, sem nem sequer conhecê-los. Serão uns cafajestes que abandonaram a própria mãe sem qualquer remorso ou eles simplesmente chegaram a um momento em que entregaram os pontos e desistiram de tentar?

Assisti a um vídeo de uma escritora nigeriana onde ela fala da importância de sempre escutarmos as duas versões das histórias. Sob pena de ficarmos com a visão toldada e nos tormarmos incapazes de compreender o outro. Acato a sugestão e vou além. Acredito mesmo que para cada história haja mais de duas versões. Muitas vezes bem mais. É claro que não podemos investigar a fundo cada um dos episódios que nos emocionam de alguma forma, seja por amor, raiva, tristeza, indignação. Mas podemos deixar de lado idéias pré-concebidas de certo e errado, de bem e de mal, de inocentes e culpados. Sob pena de nos colocarmos, a nós mesmos, do lado errado da trincheira.

2 comentários:

Tico Tico disse...

Nossa, parabéns, sua melhor crônica até agora.

Veneza Brasileira disse...

Gostei bastante! Na verdade esse blog foi uma maneira maravilhosa de fazer aqueles que não podem desfrutar da sua companhia sentir o gostinho da sua sensibilidade e também dos seus devaneios. Saudades.