sábado, 22 de maio de 2010

Mentiras Sinceras

Pois é, Lopes aconteceu outra vez. Como não devia? Até parece que você não me conhece? Desde o acidente, quantas fugiram logo no primeiro contato? Só tentei mudar o modus operandi. Com a melhor das intenções. Não, não contei quando eu percebi que estava ficando sério, como você me aconselhou. Você até podia estar certo. Mas e se não estivesse? Faz vinte anos, dois meses e seis dias que estou assim. Com você me assistindo. E dá para contar nos dedos, corrijo, dá para contar nos indicadores as mulheres que se interessaram um pouquinho por mim. Sim, não adianta repetir. Não consigo parar de contar os dias desde que... Tá. Já parei. Só quero registrar, ou pontuar, como você gosta de falar, que não é autocomiseração. É apenas constatação. Estou aqui, preso, com uma cara linda e um corpo podre. Um cérebro ágil e um pinto mole. Sim, claro, funciona! Vamos combinar, Lopes! Quando ele quer! Não, já passamos dessa fase de alguém ficar me dizendo que podia ser pior. Cessou! Mais uma palavra e saio desse consultório correndo. Rodando, no caso. Desculpa, meu humor negro não pede permissão para se manifestar. Nem mesmo quando a vítima sou eu. Mas vamos pular essa parte do aleijadinho rico e sortudo. Decidi fazer mais umas sessões só para falar da Cláudia. Porque você é obrigado a me ouvir. Meus amigos não me aturam mais. Não, tudo menos seus conselhos, só quero que você escute. Sim, houve um encontro. Um. Que na verdade nem foi bem um encontro. Ela me olhou. Percebi que os olhos dela brilharam ao me ver. Tenho certeza que ela gostou do que viu. Eu? Bem, pelo que ela falava, era bem mais alta, mais magra, tinha um cabelão liso. Não. Não que fosse feia. Mas achei-a um tanto vulgar. Um decotão escandaloso demais. Cabelo esticado, sei lá, aquilo que todas as mulheres fazem agora. Bonita, mas meio cheinha. Nada que um bom banho de loja não resolvesse. O essencial era que em todo esse tempo em que trocamos e-mails ela me passou uma impressão tão de... de alma gêmea. Sim, soa piegas, mas era como eu me sentia com ela. À vontade. Em casa. Sem frescuras. Pois não te falei? Foram seis meses. Não, detesto MSN e todas as suas abreviaturas. Só e-mail. Muitas vezes dois ou três por dia. Sabia tudo o que acontecia com ela, era como se eu vivesse a sua vida. E, confesso, como se eu pudesse resgatá-la daquela batalha cotidiana. A vida dela não é fácil, sabe? Ela trabalha muito e recebe um salário pífio. Não, nunca me perguntou. Mas acho que pelo que eu contava de mim ela tinha como perceber que eu vivo bem. Sim, continuando com o fatídico dia do encontro, a cara que ela fez, Lopes, quando viu a cadeira... foi de lascar. Não me lembro de me sentir assim nem quando era guri. Lembrou-me a cara de decepção da minha mãe quando encontrou a tampa da bomboniere quebrada debaixo da minha cama. Foi horrível. Quis voltar no tempo e contar logo no primeiro dia em que nos encontramos no chat do curso de inglês. Preparei-me para a bronca, mas... a maluca saiu correndo. Não, não é força de expressão! Ela virou e saiu correndo do restaurante. Senti-me um bosta. E não deveria ter me sentido assim. Ela também mentiu prá mim. E muito. Sei que isso não é confessionário, mas vou falar. No final do primeiro mês usei minha influência – sim, do meu pai também – para investigá-la, descobrir quem era, o que fazia, só não quis fotos ou vídeos para não tirar todo o mistério. Adivinha Lopes. Todas as lembranças de infância com a família, o pai severo, a mãe amorosa... Tudo mentira! Ela nunca soube quem foram seus pais. Viveu até os 16 anos em um orfanato. Nunca foi adotada porque era uma criança gorda. Quando saiu de lá fez o que pode para sobreviver. Considere aí o que achar mais provável. Foi presa aos 18 anos. E aos 19 outra vez. Mora com duas amigas da época do internato, que ela chama de irmãs. Não, não vou contar o motivo das prisões. Importa que agora ela tomou rumo. Parei com as investigações e me concentrei em perceber nela o que era verdadeiro. O que havia além. Acreditei que juntos poderíamos dar certo. Caríssimo Lopes, naquele encontro tínhamos ambos muito a revelar. A diferença entre nós é que meu passado é impossível esconder.

Um comentário:

Unknown disse...

Adorei, Nestor! Realmente é assim que acontece. Enquanto uns eceitam mentiras sinceras e e dão um voto de confiança (como ele fez, pois ele tbm poderia, desde o ínicio, ter "saído correndo" quando soube a verdadeira vida de Claudia) outros já se sentem enganados e "passados para tras" e simplesmente desistem.Se pararmos pra pensar,aceitar mentiras sinceras depende muito de pessoa para pessoa e do tipo de emntita sincera.Estou curiosa para saber o que passou pela cabeça de Claudia quando ela correu de Claudio!

beijo